A carta

Alice Monnerat
3 min readApr 7, 2021

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Foto de Karolina Grabowska no Pexels

No ano passado encontrei uma carta na porta da minha casa. Não uma conta de luz ou um caderno de promoções do supermercado. Era um envelope branco, sem selo, sem remetente, sem nada.

Eu moro com sete pessoas, o que faz ser bem confuso receber uma carta assim em branco. Claro que eu peguei a carta, levantei a aba do envelope, para ver se tinha uma pista dentro, mas não tinha nada, apenas uma folha dobrada.

Das sete pessoas que vivem na casa, uma não sabe ler, então resolvi eliminá-la. Porém, a carta poderia ser um desenho, o que me fez colocá-la no jogo novamente. Se fosse um desenho, poderia ser para uma outra pessoa da casa, que sabe ler e adora desenhos. Depois pensei que 99% das cartas (principalmente as sem selo, sem nada) são de amor, o que eliminava duas pessoas da casa, que são casadas uma com a outra. Porém, muitos casamentos são infelizmente infelizes e nem todas as cartas são de amor. Portanto, não seria prudente eliminar tão rápido o casal da casa.

Comecei a andar pela casa. A minha candidata preferida não estava e, como tal moradora divide quarto comigo, achei que não seria problema dar uma olhada na sua cômoda, mochila e metade do guarda-roupa. Pelo menos não seria tão ruim quanto se eu abrisse a carta. Quem sabe não resolveria o enigma? Mas não achei nada de significativo. apenas descobri alguns pertences meus que eu não via a algum tempo.

A investigação como um todo durou meses, parando por um tempo durante as provas finais e voltando a todo vapor no início do ano letivo. Cheguei perto várias vezes e eliminei com convicção três dos suspeitos. Em algum momento, eu mesma cheguei a ser a principal possível destinatária, porém uma grande reviravolta chegou bem a tempo de me impedir de ler a carta e me levou novamente para o final da lista.

A verdade é que esse tipo de coisa é difícil de descobrir. Às vezes, eu não conseguia dormir pensando que o morador mais solitário poderia ter alguma companhia nesse momento se fosse dele a carta.

Em vários momentos pensei em dividir meu segredo com alguém, porém todos os moradores da casa tinham algum morador com quem com certeza iriam querer dividir o segredo também, o que inevitavelmente levaria a carta ao conhecimento geral.

Cheguei a marcar uma reunião com a presença de todos os moradores prometendo uma grande notícia, mas na hora marcada não tive coragem. Inventei que ganhei um sorteio na internet e depois passei dias lamentando que o prêmio nunca chegava.

Algumas realidades são melhores quando ainda não são realidades, mas um dia senti que havia chegado o momento de abrir a carta. Desde quando a encontrei, previ o risco de que a investigação se arrastasse por muito tempo, de que a carta acabasse perdida ou esquecida. Para evitar tal fatalidade, guardei a carta na terceira gaveta do meu guarda-roupa, dentro do capuz de um casaco de moletom azul. Anotei a localização em meu diário, em forma de código. Porém, no dia em que resolvi ler a carta, abri a terceira gaveta, peugei o moletom azul, mas a carta não estava lá.

Minha primeira reação, frente ao total desespero, foi começar a procurá-la por toda parte. Mas logo recuperei a consciência e percebi que a carta só poderia estar em um lugar: nas mãos do destinatário. Pois mesmo que o morador que a achou não fosse o dono da carta, se ele a lesse saberia quem era e daria um jeito de entregá-la. Se não lesse deixaria a carta ali, na terceira gaveta, ou então a levaria consigo e não sossegaria enquanto não descobrisse para quem a carta se destinava. E, se fosse esse o caso, só me restava desejar a esse morador mais sorte do que eu havia tido.

Essa história me trouxe muitos ensinamentos, além de algumas noites de insônia. Admito que não foi fácil me separar da carta, saber que ela não estava mais ali e que não tinha sido eu a descobrir seu destinatário. Mas desde o dia que a encontrei, sem selo e sem nada, eu sabia que não era eu a destinada a ficar com ela. Mesmo assim, sou feliz por pelo menos ter sido eu a destinada a encontrá-la.

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Alice Monnerat

Professora de geografia. Advogada popular. Fã de Harry Potter. Sempre começando a escrever alguma coisa. Raramente terminando.