Fuga

Alice Monnerat
3 min readApr 7, 2021

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Fechou todos os botões da sua camisa pálida e deu a última golada no café frio, quando sentiu um terremoto interno e teve que correr para o banheiro.

Ensaiava levar uma vida séria, com paletó, gravata, croissant e Foucault. Para se um dia alguém fosse escrever um conto sobre ele pudesse descrever caminhadas de autoconhecimento na praça, momentos de criatividade no trabalho, e ainda acrescentar citações de algum ex-presidente norte-americano.

Mas os contos nunca davam certo. Talvez porque a escritora estivesse passando por uma certa crise ou talvez porque seus atos metódicos já tivessem sido usados em muitas crônicas. O caso é que esteja o personagem fumando um cigarro, combatendo o crime ou resolvendo um terremoto interno, a inspiração vem e o coitado tem que estar disponível. Geralmente a coisa é bem simples. Basta agir normalmente e deixar que escrevam sobre o que ele está pensando. Como quando acidentalmente ele serve duas xícaras de café porque estava distraído imaginando “que doideira deve ser o carnaval de Salvador” e o escritor registra as duas xícaras servidas como um claro sinal de sua solidão.

O problema é quando tem que faltar o trabalho, para fingir que quer mudar de vida, viver uma grande aventura, talvez encontrar destroços de uma nave espacial e salvar o dia. Não se explica isso facilmente para um chefe.

- Bom, é o seguinte, faltei ao trabalho ontem porque estavam escrevendo um conto sobre mim em que eu não vinha ao trabalho! É, um conto, um texto. Sim, isso mesmo! Eu sou um personagem, oras! Você também! Coadjuvante ainda por cima!

Coadjuvante ou não, ele continua sendo o chefe.

Nesse conto, o rapaz da camisa pálida e do terremoto, teve uma daquelas visões repentinas do porquê veio ao munto e o que deve fazer com sua vida a partir daquele momento (coisas que só acontecem em contos) e resolveu largar o emprego, o curso de marketing, as aulas de yoga em que havia se inscrito mas ainda não havia começado. Tudo isso para ir atrás de seu grande amor.

Foi até a empresa, pediu as contas, deu um abraço no chefe, fez um tímido discurso de despedida para os colegas de trabalho, apertou a mão de alguns e recolheu suas poucas coisas da mesa.

Fez uma mala sem exageros, com algumas camisas pálidas e sem esquecer a escova de dentes. Ficou em dúvida de qual livro levar e acabou pegando três.

Despediu-se da vizinha de frente, com quem nunca teve muito contato, mas sabia que ela era a pessoa certa para dizer que ia embora, pois contaria para todo mundo.

Se certificou de pagar tudo que devia, embora não tivesse o costume de dever ninguém.

Avisou nas redes sociais sobre sua partida e prometeu checar seus e-mails pelo menos de mês em mês.

Por fim, veio falar comigo. Que a minha inspiração voltasse, que eu fosse feliz e criasse um novo personagem. Claro que insisti que ficasse ou que me deixasse o acompanhar. Mas ele foi firme, me enrolou com uma história de que meu problema era com ele e que dá próxima vez eu escolhesse alguém com horários mais flexíveis. Segurei o choro e tive a impressão que ele também. Mas o canalha ia chorar era de felicidade. Aí, eu prometi escrever um último conto sobre ele, sobre isso, sua partida. E ele respondeu: ‘’Escreve, mas vai ser um conto sobre você, e não sobre mim.’’ .

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Alice Monnerat

Professora de geografia. Advogada popular. Fã de Harry Potter. Sempre começando a escrever alguma coisa. Raramente terminando.