Rotina

Foto de Foodie Factor no Pexels

Fernanda abriu os olhos e se sentiu estranha. Levantou e escovou os dentes como sempre faz. Achou estranho estar com o pijama azul porque tinha certeza que tinha ido dormir com o pijama rosa. Seu telefone tocou e era sua mãe, ligando de manhã cedinho, assim como ontem.

“Bom dia, Nanda! Já acordou?” — Fernanda sentiu que era a mesma saudação do dia anterior, mas se acalmou pensando se não seria a mesma saudação de todos os dias…

Conversou com a mãe por alguns minutos enquanto colocava leite e cereal em uma tigela e comia sem pressa. Não prestou muita atenção nas palavras da mãe porque estava distraída analisando o sonho que teve durante a noite, em que seguia um gatinho amarelado por várias ruas de casas coloridas mas nunca chegava em lugar nenhum.

No geral a mãe falou sobre o de sempre: que estava preocupada com sua irmã porque ela parecia não ir à aula na faculdade; que o marido, o pai de Fernanda, era muito teimoso e havia cismado de consertar a pia sozinho; que vizinha havia feito uma festa ontem em plena quarta-feira (mas hoje não é sexta-feira? Fernanda pensou). Disse para mãe ter paciência com o pai e não se preocupar com a irmã e se despediu com a impressão de já ter ouvido aquilo tudo antes.

Quando estava se vestindo encontrou caída em um canto uma meia com desenhos de gatinhos que ela jurava que já tinha colocado para lavar.

Desceu no elevador sozinha, contente consigo mesma de não estar atrasada apesar de nunca se atrasar. O metrô estava cheio como sempre, mas mais ou menos no meio do caminho ela conseguiu sentar, como no dia anterior.

Não teve muito trabalho pela manhã e passou a maior parte do tempo assistindo vídeos engraçados. Abriu o bloco de notas para acrescentar algumas coisas na lista de compras e lembrou de várias outras que achava que já deviam estar anotadas lá.

À tarde, começou a revisar um dos projetos em que estava trabalhando. Gostava do seu trabalho e o tempo passava rápido quando estava inspirada, mas ultimamente não se sentia inspirada. Parecia que estava projetando sempre as mesmas casas com parede de azulejo queimado e espelhos redondos com tira de couro.

Às quatro da tarde sua mãe ligou de novo, mas Fernanda não viu tocar e não atendeu. Lembrou que ontem a mãe ligou no mesmo horário para comentar da novela reprisada à tarde que Fernanda não assiste. Resolveu deixar para ligar de voltar quando já estivesse em casa, porque estava com tudo adiantado e poderia sair mais cedo. Parecia que já tinha feito todo o serviço de hoje no dia anterior, não tinha nada novo e não recebeu nenhuma ligação importante.

Saiu do escritório às 17 horas, mas não chegou em casa mais cedo porque resolveu aproveitar o tempo extra para parar para tomar um sorvete de chocolate. Quando entrou na portaria do seu prédio, a vizinha de baixo estava desesperada avisando que seu cachorro Filomeu tinha fugido, coisa que não era surpresa já que acontecia toda semana, inclusive tinha acontecido ontem mesmo.

Fernanda tomou um banho demorado e abriu um livro pra ler, mas acabou se distraindo vendo alguma coisa no celular. Abriu a geladeira para pensar o que comeria no jantar e ficou surpresa ao descobrir que ainda tinha um pouco de lasanha, porque ela jurava que tinha terminado de comer ontem à noite.

Tinha sido um dia estranho, mas estava relaxada e pronta para dormir. Como sempre, conferiu o horário do despertador no celular e foi então que levou um susto ao ver escrito na tela: “Quinta-feira, 6 de junho”.

Foto de Aaron J Hill no Pexels

Quinta-feira? Será mesmo que tinha se confundido tanto? Era quinta e não sexta? Mas Fernanda é tão atenta, responsável, confere todos seus compromissos… Como poderia passar um dia todo achando que era o outro? E um dia estranho desses! Cheio de coisas que parece que foram feitas no dia anterior…

Fernanda começou a desconfiar que alguma coisa estava errada, pensando que seu dia tinha sido exatamente igual ao anterior. O pijama azul, a meia de gatinhos, as ligações da mãe, a fuga de Filomeu! Tudo isso havia acontecido ontem, no mesmo horário!!!

Fernanda começou a fantasiar com seu próprio Dia da Marmota. Estava presa na Quinta-feira, 6 de junho e deveria viver o mesmo dia várias e várias vezes até conseguir resolver um conflito aberto em sua vida!

Mas qual seria esse conflito? Seu último relacionamento havia terminado há dois anos, tendo durado apenas 6 meses porque seu então namorado disse que “não queria nada sério”. Sua relação com a família ia bem, apesar de não ter atendido a ligação da mãe hoje à tarde.

O trabalho tinha seus problemas, é verdade, mas no geral ela estava indo bem! Tinha se formado há três anos e há um ano tinha seu próprio escritório. Conseguia pagar todas as suas contas sozinha e sentia que no futuro as coisas poderiam melhorar.

O que mais poderia ser? Será que deveria ter ajudado a encontrar Filomeu? Ou colocado a meia de gatinhos para lavar? Ou seria o sabor de sorvete que ela escolheu chocolate quando na verdade queria experimentar um sabor novo há muito tempo?

Sim, deveria ser isso. Não exatamente o chocolate, mas experimentar coisas novas, se arriscar, viver. Fernanda precisa ousar, se aventurar em umd ai comum, fazer alguma coisa só porque está com vontade!

Resolveu então que quando acordasse no dia seguinte, que seria novamente “Quinta-feira, 6 de junho” iria viver um dia diferente. Um dia emocionante. Um dia digno de um feitiço do tempo!

Começou a lista tudo que poderia fazer. Não iria trabalhar. Diria para mãe deixar a irmã em paz. Tomaria não um, mas três novos sabores de sorvete. Iria se matricular na aula de canto, aperfeiçoar sua voz, quem sabe até mesmo ir a um Karaokê e cantar em frente a uma plateia!

Caiu no sono listando mentalmente tudo que iria fazer. Acordou algumas horas depois com o despertador tocando. Levantou e escovou os dentes como sempre faz. Enquanto colocava o pijama azul e a meia de gatinhos que encontrou caída para lavar, seu telefone começou a tocar. Era sua mãe dizendo para Fernanda não esquecer de ligar para a irmã mais tarde para dar parabéns pelo seu aniversário, pois hoje é Sexta-feira, 7 de junho.