Vida

Alice Monnerat
3 min readApr 7, 2021

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Foto de Krivec Ales no Pexels

Acho que o melhor momento pra morrer é lá pelos 85, depois de ter tido uma vida boa e um ano ruim. Você vai sentindo a morte chegar e pensa na vida que levou e em como foi boa, em como foi feliz, na infância no quintal da vovó, na música ruim (e alta) que escutava na adolescência, no dia em que conheceu sua esposa, naquela Copa do Mundo (ou em várias delas), no nascimento da sua afilhada, em como foi triste quando sua mulher descobriu que não podia ter filhos, nos 40! Ah, como foi bom chegar aos 40... e você se achava velho! Pensa na promoção que recebeu e na briga com a esposa no mesmo dia, que te fez decidir adotar uma criança! Pensa no dia em que adotou a Carolzinha… Lembra das viagens em família, dos almoços de domingo, dos truques de mágica no seu aniversário de 43. Lembra bem do dia em que sua filha adotiva falou que te amava pela primeira vez. Lembra de chegar em casa e compartilhar cada detalhe do seu dia com a mulher que amou a vida inteira e achar que nada podia melhorar. Então lembra do nervosismo para conhecer o primeira namorada da Carol, e a felicidade ao ouvir que ela ia se casar com Natália. Lembra da filha de noiva, mais linda até que a mãe. Lembra do dia que virou avô, da Malu nascendo, a coisa mais linda que você já viu, de como te fez pensar que um amor daqueles era impossível. Foi quando a vida ficou perfeita, com visitas da neta em todos os finais de semana. Lembrou de como ela te amava e de como partiu seu coração sem saber ao te trocar pelo telefone com as amigas lá pelos 12 anos. Pensou em como isso tudo foi bobagem e em como sua neta sempre gostou de você. Lembrou da festa de 15 anos dela! E de quando aos 16 ou 17, chegou com um rapaizinho, que ela apresentou ao avô primeiro do que a qualquer um, dizendo se tratar de um amigo, mas você já soube logo que Malu estava apaixonada. Quando Malu foi para faculdade, a casa ficou mais vazia, mas não houve mal não. Você e sua esposa, aposentados e sozinhos, mas mais do que nunca juntos, e foi como se um amor antigo se tornasse novo. E foram anos lindos, compartilhando um amor de quem passa a vida inteira junto. E aí, mesmo querendo esquecer, se lembrou do ano passado. De sua filha mudando para Madri logo após a morte de sua esposa. Você pensou em ir, mas não queria ser um fardo pra ninguém.. E foi então que começou a se sentir um fardo, a viver só de lembranças, a só saber falar de lembranças, contar lembranças, almoçar e jantar lembranças. Mas mesmo as lembranças, começaram a te abandonar, ficaram embaçadas. A memória começou a falhar. Você corria para o álbum de retratos quando esquecia a cor do olho de alguém. Um dia se viu se perguntando ‘’Quem é essa mesmo?’’ e alguém respondeu ‘’É a Malu, sua neta’’. Foi inevitável, caiu de cama, quis morrer, pediu para Deus que te levasse logo. Não queria se despedir de ninguém, disse para se mesmo que seria muito triste, mas a verdade é que estava morrendo de medo de esquecer o nome de alguém. Deitou na cama às nove, pensou sobre tanta coisa e tanta gente e, lá pra uma da manhã, agradeceu a Deus pelos seus maravilhosos 84 anos de vida e se preparou para morrer em paz por saber que foi feliz. Fechou os olhos e fez uma oração que sua mãe te ensinou quando criança. Dormiu. Essa sim é forma boa de morrer. Sem ressentimentos, contente com tudo que viveu. A consciência limpa, o coração a mil. Um corpo cansado, mas depois de muito ter aproveitado a vida. Essa sim é forma boa de morrer.

E então, depois de um sono de tranquilo, você abre os olhos e se dá conta de que não está no céu, mas em casa e que, provavelmente, vai ser um dos sortudos que consegue chegar aos 91.

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Alice Monnerat

Professora de geografia. Advogada popular. Fã de Harry Potter. Sempre começando a escrever alguma coisa. Raramente terminando.